De Kuchipudi ao Balé: semelhanças entre a dança clássica indiana e o balé russo
Natya Shastra e a essência espiritual do rasa
O Natya Shastra é um antigo tratado indiano sobre as artes performáticas, escrito em sânscrito e tradicionalmente atribuído ao sábio Bharata. Reconhecido como o texto fundamental da dança clássica, do teatro e da música da Índia, foi redigido entre 200 a.C. e 200 d.C., embora algumas partes possam ser ainda mais antigas. Composto por 36 capítulos e mais de 6.000 versos em forma poética, o Natya Shastra vai além das técnicas de dança e teatro ao abordar também o propósito espiritual da arte. A obra ressalta que as artes performáticas são um meio de elevação emocional e espiritual, tanto para o artista quanto para o público.
Bharata combina o bhava — a emoção expressa pelo intérprete — com o rasa, a experiência espiritual vivida pelo público. Rasa é um estado emocional transformado, despertado diante de uma grande obra de arte.
A palavra deriva da raiz "rasah", que não possui equivalente exato em português, mas pode ser compreendida como "essência". Rasa também está associado ao paladar: é o prazer despertado por toda forma de arte. Alguns estudiosos sugerem que rasa busca provocar uma emoção já latente no público, aguardando apenas ser ativada.
Dança clássica indiana e a teoria do rasa
A teoria do rasa fundamenta todas as artes clássicas indianas, incluindo suas diversas formas de dança clássica. A Índia possui uma rica e antiga tradição de dança que remonta ao século II a.C. Entre as formas mais conhecidas estão Bharatanatyam, Kathak, Kuchipudi, Manipuri e Odissi, entre outras. Apesar de terem evoluído e se diversificado em estilos distintos ao longo dos séculos, todas têm como base textos antigos como o Natya Shastra. São frequentemente marcadas por movimentos rítmicos ágeis com os pés, expressões faciais intensas e gestos complexos com mãos e olhos em plena harmonia.
Apesar de separadas por milênios e vastas distâncias, há muitos paralelos entre a dança clássica indiana e o balé russo. O balé russo surgiu no final do século XVII, durante o reinado de Pedro, o Grande, enquanto a dança clássica indiana tem raízes anteriores à era cristã. Ambas são disciplinas altamente estruturadas e exigem rigor excepcional de seus praticantes.
O treinamento segue, tradicionalmente, uma hierarquia, e os alunos só avançam após dominarem os passos fundamentais. Na Índia, estudantes sérios costumam frequentar escolas em regime de internato para se dedicar integralmente ao estudo da dança — assim como jovens russos competem por vagas em prestigiadas academias de balé em São Petersburgo e Moscou.
Método Vaganova
Existem muitas afinidades intelectuais entre as danças clássicas indiana e russa. Agrippina Vaganova foi uma das principais figuras do balé russo no século XX, autora de duas obras fundamentais — Princípios Básicos do Balé Clássico e Fundamentos do Balé Clássico — que estabeleceram a base de uma pedagogia tipicamente russa. Curiosamente, o rigor intelectual e a atenção aos detalhes presentes em seus escritos refletem de forma notável os ensinamentos do Natya Shastra.
Hoje pilar do treinamento do balé russo, o método Vaganova é conhecido por sua abordagem holística e sistemática da técnica. Seu uso do port de bras (movimentos dos braços), épaulement (alinhamento dos ombros) e sua ênfase na musicalidade e na expressividade o diferenciam de outros estilos europeus.
Assim como o Natya Shastra, o método Vaganova destaca a importância do engajamento completo do corpo em uma harmonia deliberada e dinâmica. A conexão entre dançarino e público era altamente valorizada tanto por Bharata quanto por Vaganova, que acreditava que precisão técnica, expressividade e narrativa dramática deveriam atuar em conjunto para cativar verdadeiramente a plateia.
Contrastes e paralelos entre as técnicas de Kuchipudi e do balé
Há também semelhanças estilísticas entre o balé russo e a dança clássica indiana. O Kuchipudi é uma das formas de dança mais populares do sul da Índia.
À primeira vista, Kuchipudi e o balé parecem opostos. O Kuchipudi se caracteriza por passos rítmicos que batem e marcam o chão. Os dançarinos usam ghungroos (sinos de tornozelo) para acentuar esses movimentos. Enquanto o balé parece desafiar a gravidade, o Kuchipudi a reconhece e reverencia, cedendo à sua força. Kuchipudi também inclui mudras estilizadas (gestos com as mãos), que formam a base da narrativa, enquanto no balé as mãos geralmente acompanham a linha dos braços de maneira mais neutra.
No entanto, uma análise mais cuidadosa revela paralelos técnicos notáveis.
-
Primeiro, tanto o balé quanto o Kuchipudi dependem do giro externo das pernas. Essa rotação, que se origina nos quadris, é tecnicamente exigente em ambas as formas. É chamada de "primeira posição" no balé e aramandi no Kuchipudi.
-
Em segundo lugar, a postura do tronco é quase idêntica. Em ambas as formas, os dançarinos são ensinados a manter o tronco ereto e alongado, com os ombros baixos — mesmo quando os joelhos estão profundamente flexionados.
-
Em terceiro lugar, o movimento da cabeça e dos olhos, tanto no balé quanto no Kuchipudi, geralmente segue o movimento das mãos.
-
Em quarto lugar, ambas as técnicas exigem atenção minuciosa à transferência de peso entre os pés, pois os dançarinos estão em constante transição de um pé para o outro, passando sempre por um breve momento de equilíbrio em posição neutra.
-
Por fim, a estrutura de uma aula de balé e de Kuchipudi é surpreendentemente semelhante. No balé, a aula começa com passos fundamentais na barra, que evoluem para combinações mais complexas. Da mesma forma, no Kuchipudi, as aulas iniciam com passos básicos chamados adavus, que posteriormente são combinados em sequências elaboradas chamadas jathis. Somente após dominar esses fundamentos, o dançarino pode aprender as mais célebres obras narrativas, como "O Lago dos Cisnes" ou "Bhama Kalapam".